Justiça e Estado: Os ‘inimigos’ de uma bebê de 2 anos que corre contra o tempo para sobreviver

Burocracias tornaram-se barreiras para que a pequena Allana, que mora em Cotia com a família, possa realizar 9 cirurgias de alto valor

Allana, de 2 anos, espera Justiça decidir sobre seu tratamento. Foto: Arquivo pessoal 



Allana Miloch Fonseca, de apenas 2 anos, precisa urgentemente passar por nove cirurgias após ter sido diagnosticada com obstrução respiratória alta, em decorrência de uma estenose laringotraqueal com imobilidade de pregas vocais e estenose subglótica grau 3.

Entre as cirurgias, a pequena, que mora com os pais e a irmã gêmea em Cotia, precisa passar por retirada de molde, dilatação da estenose, controle inflamatório e troca de cânula de traqueostomia e cirurgia para fechamento de fístula. Esses e outros procedimentos somam, em média, R$ 600 mil. (VAKINHA ONLINE: CLIQUE AQUI PARA AJUDAR ALLANA). 


Acontece que o médico otorrinolaringologista do plano de saúde da paciente informou que a única pessoa qualificada no país para este tipo de procedimento seria uma médica que não está credenciada no plano.

A alternativa encontrada por Dienifer Bragiato Fonseca, mãe de Allana, foi recorrer ao Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público (Iamspe), já que ela é servidora do estado e sua filha mantém vínculo com a autarquia na condição de sua dependente. 

Mas, como o instituto negou a realizar as cirurgias (entenda logo abaixo), não restou outra opção à família de Allana a não ser procurar um advogado e ingressar com ação no Ministério Público de Cotia. 

Além de arcar com os custos das nove cirurgias, a ação, ingressada pelo advogado Leandro Mathias, pede ainda indenização por danos morais e ressarcimento por danos materiais, consistente no reembolso das despesas que a genitora já teve até a presente data.

O valor total chega a R$ 907,3 mil, pois ainda soma o orçamento dos honorários médicos e as despesas hospitalares.

Quanto mais o tempo passa, mais a vida de Allana corre risco. Foto: Arquivo pessoal 



A LUTA CONTRA O IAMSPE

Após ser notificado pelo Ministério Público sobre a ação de obrigação de fazer, o Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público (Iamspe) disse que não tinha estrutura para realizar o procedimento.

Sobre os valores colocados na ação, o instituto justificou que também não tem “conteúdo econômico aferível”, pois, segundo a autarquia estadual, “o que se discute é o direito à saúde, e não os custos com o tratamento, que não necessariamente terão o valor que foi orçado”. Assim, o Iamspe requereu a fixação do valor da causa em R$ 40 mil.

O advogado de Allana também requereu a aplicação do Código de Defesa do Consumidor à relação mantida entre as partes, o que ensejaria a possibilidade de exigir que o fornecedor do serviço cumprisse o contrato, fornecendo o necessário para tratamento da doença de sua filha, ainda que fora da rede conveniada.

Mas, em contestação, o instituto alegou que é uma autarquia estadual que presta serviços de assistência médica exclusivamente a servidores estaduais e seus dependentes, “não comercializando planos de saúde no mercado, tendo os beneficiários vínculo institucional, e não contratual”.

BARREIRA NA JUSTIÇA

No último dia 3, mais uma barreira surgiu para o tratamento de Alana. O juiz de direito Sérgio Augusto Duarte Moreira julgou ‘improcedentes’ os pedidos do advogado Leandro Mathias na ação do MP.

O magistrado sustentou que os argumentos apresentados pelo Iamspe ‘merecem prosperar’, pois o instituto “carece de legitimidade passiva, pois não tem a obrigação legal de atender ao pedido da autora, não lhe sendo exigível que forneça atendimento fora da rede conveniada”.

Sérgio cita o artigo 11 do Decreto-Lei nº 257/1970, que versa sobre a finalidade e organização básica do Iamspe

“A prestação dos serviços será realizada por meio de hospitais próprios ou conveniados, ou de médicos credenciados. No caso dos autos, a autora pleiteia a realização de tratamento cirúrgico com médica não credenciada e em hospital não conveniado com o Iamspe [...] portanto, as obrigações assumidas pela autarquia são aquelas decorrentes de lei, a qual prevê a realização de serviços em hospitais próprios ou conveniados e por médicos credenciados”, disse o juiz.

“Ademais, o Supremo Tribunal Federal definiu que entes federados têm responsabilidade solidária pela prestação de assistência à saúde, o que não engloba as autarquias, pois não se confundem com os entes federados a que se vinculam. Assim, o dever do Estado de garantir o direito à saúde a todos, previsto no art. 196 da Constituição Federal, não pode ser exigido da autarquia, mas sim do ente federado. Isto posto, não pode o IAMSPE ser condenado a cumprir um dever oponível ao Estado de São Paulo”, completou o magistrado.

Leandro Mathias, por sua vez, achou inaceitável a sentença de Sérgio. Segundo ele, não houve sequer avaliação médica judicial para confirmar o risco de vida e a capacidade técnica do Iamspe para realizar os procedimentos.

“A sentença avaliou o mérito em menos de duas páginas. Será que um caso desta magnitude pode ser resolvido com tão pouco argumento? Agora, resta para a pequena Allana um recurso de apelação que será julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, onde cremos que será feita a verdadeira justiça”, disse.

"CABE PROCESSO AO ESTADO"

O advogado e especialista em direito do consumidor, Marcus Borges, também avaliou como negativa a decisão do juiz Sérgio Augusto. Segundo ele, neste caso da bebê Alana, cabe também um processo ao Estado de São Paulo, e não somente ao Iamspe.

De acordo com Borges, uma vez que o médico prescreveu a cirurgia da bebê, concedeu todas as informações e o Iamspe deixou de cumpri-las, ele se torna responsável pelo procedimento que deve ser adotado, seja em sua própria unidade, em uma conveniada ou de terceiros.

“Indica, inclusive, uma falha do que está escrito no artigo 3º do decreto que cria o instituto, que diz que compete ao Iamspe a finalidade de prestar assistência médica hospitalar de elevado padrão aos seus contribuintes e beneficiários”, avalia.

Ainda de acordo com o especialista, a saúde é um dos princípios da dignidade humana, portanto, cabe ao estado conferir assistência médica à pessoa considerada hipossuficiente.

Na sentença, o próprio juiz concede justiça gratuita para a mãe, ou seja, demonstra claramente que ela não tem condição de pagar o tratamento de sua filha. Automaticamente, isso também demonstra a fraqueza da sentença que, certamente, o Tribunal de Justiça vai reformar essa decisão

Borges explica que qualquer autarquia que seja vinculada ao estado deve ser responsabilizada com o dever de prestar assistência médica. “Uma vez que a Dienefer comprova que é servidora, comprova ser conveniada ao Iamspe e comprova que a criança necessita da cirurgia médica, é responsabilidade do instituto fazer essa cirurgia”, detalha.

Desta forma, a decisão do juiz Sérgio Augusto Duarte Moreira, segundo Borges, falhou em declinar a responsabilidade para o estado e afastar a responsabilidade do Iamspe.

Ele [Iamspe] tem que cumprir o direito master que é conferir a pessoa humana a dignidade e acessibilidade ao produto e serviço que, neste caso, seria a cirurgia. Uma vez que a criança comprovou a necessidade de fazer a cirurgia médica, uma vez que está tudo comprovado nos autos, não é improcedente como o juiz disse. Eu não sei de onde ele tirou improcedência

Allana com seus pais e sua irmã gêmea. Foto: Arquivo pessoal 


“UM MISTO DE INJUSTIÇA E TRISTEZA”

Para a mãe de Allana, os obstáculos na Justiça e os entraves burocráticos envolvendo a vida de sua bebê, geram um misto de injustiça e tristeza.

“Venho lutando há meses na Justiça pela vida da minha filha. Quanto mais o tempo passar, mais vai se agrava o problema dela. Pior será para ela. A única prejudicada nisso tudo está sendo a minha filha”, diz Dienefer.

A mãe narra que ela e o marido vivem 24 horas em função da filha, e toda a rotina da família mudou desde então. “Eu me sinto injustiçada, porque se eu não lutar pela minha filha, que tem 2 anos e 3 meses, quem vai lutar? É um misto de injustiça e tristeza juntos”, conclui.

(ESSA REPORTAGEM FOI ATUALIZADA ÀS 20H02 DO DIA 13/12/2021 COM A FALA DO ADVOGADO LEANDRO MATIAS)

REPORTAGEM: NETO ROSSI 

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