O que acontece quando ninguém cuida do começo da vida?

Se quisermos um futuro menos adoecido, precisamos entender que o começo sempre mora nos primeiros anos

Imagem: Divulgação 

Coluna Razão de Crescer, por Evenyn Uchôa

Falar da primeira infância é falar do período em que o cérebro mais cresce em estruturas emocionais, cognitivas e sociais. É quando começamos a nos organizar para o mundo. É o tempo em que a criança descobre, pelo olhar do outro, quem ela pode ser. Cada uma à sua maneira, mas sempre com uma base que atravessa a todas: o afeto como força que forma.

A ciência vem mostrando, pela neurociência, psicologia do desenvolvimento e educação, algo que, no fundo, a experiência humana já sabia: nos primeiros anos, cada interação é arquitetura. Afeto, previsibilidade e presença vão modelando redes internas que sustentam a confiança, a capacidade de regular emoções e a coragem de explorar o mundo sem medo.

Quando esse alicerce falta, o corpo cresce, mas algumas partes internas continuam esperando cuidado.

E temos testemunhado isso não apenas nas últimas semanas, mas ao longo dos últimos anos. Infâncias feridas e não vistas que se transformam em adultos tentando sobreviver em terrenos internos que nunca foram preparados para suportar tanto peso. Adultos que, sem saber o que é apoio, acabam se jogando na cova dos leões porque foi a única forma de existir que aprenderam.

Há um silêncio duro quando começamos a naturalizar a violência e, pior ainda, quando nos acostumamos a viver dentro dela.
  • Quando rotulamos uma criança neurodivergente antes de enxergar quem ela realmente é;
  • Quando instituições se omitem ou transformam temas como infância e autismo em pauta de vitrine para as redes sociais;
  • Quando a comunidade não denuncia porque “cada um sabe o que faz com o seu filho”;
  • Quando, dentro de casa, o medo substitui o cuidado.

E aqui entra algo que precisamos refletir como sociedade e que, nos meus anos de experiência clínica e agora com a maternidade de um menino de três anos, mexe profundamente comigo ouvir: “Meu filho, minhas regras. Eu faço do meu jeito.” Mas não é bem assim.

Não estou falando sobre existir um jeito certo ou errado de criar nossos filhos. Mas eles vão conviver em outros espaços, circular por outras relações, existir em outras comunidades. E esse adulto que um dia chega à sociedade leva consigo muito do que viveu, aprendeu e, principalmente, do exemplo que viu em casa.

O que fazemos com uma criança não termina nela; reverbera em quem ela se tornará e em toda a sociedade.

A ciência explica muita coisa. A clínica confirma todos os dias. Mas o que falta, e falta muito, é responsabilidade coletiva.

Cuidar da primeira infância não é um gesto individual. Não é algo que possamos colocar nas costas de uma única mãe, de um único pai, de uma única professora, muito menos da própria criança. É um compromisso social, de políticas públicas que ainda são escassas. Porque cada presença que acolhe é um caminho que se abre. E cada ausência que fere é um caminho que deixa de existir.

E isso volta. Cedo ou tarde, volta.

Talvez por isso esse tema me atravesse tanto. Porque vejo onde as histórias começam a ruir. E quase sempre ruem no mesmo lugar: na infância que não foi vista, protegida, nomeada, cuidada.

E o que podemos fazer?

Comece acolhendo a criança que ainda mora em você. Observe suas memórias, perceba o que ainda pesa e o que ainda pede colo. Entenda como isso molda quem você é hoje e como você também pode começar a cuidar de si com a delicadeza que um dia faltou.

E, como sociedade, precisamos ter coragem de fazer outras perguntas:

  • Quem são as crianças que estamos escolhendo não ver?
  • Quais violências estamos normalizando sem perceber?
  • Que discursos estamos repetindo, achando que são “do mundo”, quando na verdade só refletem nossas próprias ausências?
  • E quem estamos deixando para o mundo quando fechamos os olhos para o que importa?

Se quisermos um futuro menos adoecido, precisamos entender que o começo sempre mora nos primeiros anos.

Reparar esse começo é urgente. Contem comigo.



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