Quando o amor cansa: o impacto da exaustão adulta na infância de hoje

Em sua estreia no Cotia e Cia, a psicóloga Evenyn Uchôa reflete sobre a infância atravessada pela pressa, pela culpa e pela falta de tempo que marcam a vida moderna

Imagem ilustrativa


Coluna Razão de Crescer, por Evenyn Uchôa

Oi, tudo bem do lado daí?

Seja bem-vindo(a) ao nosso primeiro encontro na coluna Razão de Crescer. Um espaço para pensar sobre o que nos forma, como crescemos, como cuidamos e o que tem adoecido as infâncias e adolescências de hoje.

Vivemos uma época em que a infância é observada, medida e comentada. As redes sociais trouxeram muitas trocas, mas também um peso invisível: o de parecer bem, o de estar “fazendo certo”, o de dar conta de tudo o tempo todo.

O afeto virou vitrine. A comparação virou hábito. A culpa, companhia diária.

Entre trabalho, boletos, falta de rede de apoio e o barulho das notificações, o amor dos adultos foi ficando cansado - um amor que ama, mas se exaure; que tenta, mas não dá conta; que quer presença, mas só encontra pressa.

A socióloga inglesa Jacqueline Rose já dizia: “A infância é uma invenção do adulto.”

De fato, a forma como enxergamos as crianças muda conforme a época, a cultura e as expectativas da sociedade.

Na atualidade, a infância foi sendo atravessada por uma lógica de consumo e desempenho: cada fase virou um projeto, cada gesto um conteúdo, cada conquista um resultado.

Nunca se leu tanto sobre desenvolvimento infantil e, paradoxalmente, nunca estivemos tão distantes de viver uma infância plena.

O brincar foi substituído por estímulos; o silêncio, por telas; a espontaneidade, por agendas lotadas.

Vivemos, como sociedade, o paradoxo de tentar proteger as crianças de tudo e, ao mesmo tempo, entregar a elas um mundo emocionalmente esgotado.

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, um em cada sete adolescentes no mundo apresenta algum transtorno mental diagnosticável.

No Brasil, levantamentos recentes indicam que sintomas de ansiedade e depressão têm surgido cada vez mais cedo e, junto disso, aumentam os comportamentos auto lesivos e as dificuldades de regulação emocional.

Esses números não nascem apenas de fatores individuais.

Eles refletem o modo como a sociedade se organiza: cansada, acelerada, desigual.

É difícil falar de saúde mental infantil sem falar de economia, de pobreza, de acesso a tempo e cuidado.

Famílias inteiras vivem na corda bamba entre sobreviver e educar.

O amor cansado não é ausência de amor, é amor atravessado pela falta.

Falta de tempo, de rede, de políticas públicas, de espaço pra ser vulnerável.

É o amor da mãe que trabalha o dia todo e chega em casa esgotada, do pai que tenta ser presente, mas é engolido pela rotina, dos avós que criam netos sem descanso.

É o amor que quer ser inteiro, mas só consegue ser suficiente.

E, ainda assim, é esse amor que sustenta o crescer.

Mesmo cansado, ele resiste.

Mas quando o amor se torna apenas esforço, o vínculo se enfraquece e a infância passa a se construir num terreno frágil.

Talvez o primeiro passo para cuidar da infância de hoje seja cuidar da exaustão dos adultos. E, por acreditar que saúde emocional e existencial se faz de forma coletiva, nós podemos fazer a diferença na vida de uma família — sendo profissionais, sendo rede de apoio.

Vamos nos relembrar de que viver, na sua maior parte, é uma ação coletiva. Nós precisamos do outro. Precisamos também permitir que esse outro ajude - ao contrário da lógica em que vivemos hoje, de cada um na sua individualidade. Estamos perdendo a coletividade, e isso é perder as possibilidades de ser melhor.

Permitir-se pausar, desacelerar, rever o que é urgência e o que é excesso.

Entender que, mais do que brinquedos, estímulos ou explicações, as crianças precisam de adultos que possam descansar o amor.

Amor sem performance, sem comparação, sem perfeição; com defeitos, que erra tentando, não segue receita, mas cuida com jeito.

Espero que este primeiro texto tenha te trazido boas reflexões. Você não está sozinho. E, dito isso, nos próximos textos quero seguir falando sobre ser criança e adolescente nos dias de hoje.



Postagem Anterior Próxima Postagem