A árvore do meu amigo que se foi | Cartas para Ontem #3

Revivi um tanto da sua história conversando com alguns amigos sobre esta crônica, e, de alguma forma, ela é uma carta coletiva de todos nós, ao passado, ao agora e ao futuro: para onde estiver plantado os vestígios da sua memória, as folhas mortas da sua árvore de luto

Foto: Arquivos pessoais 

Por Wil Delarte

Quando pensei em te escrever esta carta, amigo, agora que tudo é tarde, muitos sentimentos misturados me ofuscaram o horizonte da escrita, desta aqui. Talvez porque até hoje nunca havia voltado àquela cena profundamente, àqueles dias, e tudo o que se sucedeu desde então teria sido fuga e melancolia.

Nunca soube, Fabiano, porque te chamavam de “Boy”. Teria sido por conta do seu primeiro emprego de office-boy? Provavelmente. O “Boy roqueiro”. O “Boy” de sorriso triste e olhar profundo, referência para todos nós e quem gostaríamos de ser, a turma toda.

Lembro-me que foi no seu carro a primeira vez que ouvi Tom Sawyer do Rush, no talo. Estávamos a caminho do Havana Rock Bar, lendário e praticamente único “bar rock” de Cotia desde sempre... A bateria frenética de Neil Peart, alucinante, minha nossa!, você no volante, pneu cantando, o pé pesado no acelerador... Era entorpecente não ter medo de morrer. Será que você tinha algum?

Na época eu era muito mais novo, não havia ainda colocado nada no nariz, nem imaginava que a droga consumia sua depressão, ou, quem sabe, a depressão te afundava nas drogas. Onde começa a causa e termina a consequência? Difícil saber, meu amigo... Mas, para mim em especial, você era luz, era sabedoria, era tudo o que gostaríamos de ser.

Quantos poemas escrevi para minha solidão sem me dar conta de que eram para você.

“Vejo a vida esvair-se em brasa

e o peito inerte acelerar

na noite branca a escorrer do nariz ...”

Sabe as casinhas abandonadas na mata que sempre nos refugiávamos, onde levávamos namoradas e tantas outras coisas, onde tinha a “sua árvore”? Hoje é um condomínio chamado “Natureza”. Estranho, né? Destroem a natureza e constroem um condomínio com o seu nome. Foi por saber que ali havia a “sua árvore” que, depois de muito tempo desaparecido, soubemos onde te encontrar.

Quantos fantasmas ainda nos assombram por lembrar de suas pernas bailando no ar naquela árvore, na “sua árvore”.

Nunca levamos a sério o seu papo de que um dia morreria ali, pior, que se enforcaria ali... Quantos galhos atravessaram a turma desde então? Muitos afundaram e nunca mais saíram do buraco.

Muitos criaram raízes no buraco e só saíram anos depois.

Muito silêncio e poucas palavras sobre você foi a saída de alguns, e a minha.

Você era o Sol que nos agitava, que nos unia. Sua partida foi um balde de água fria nos dias.

Não tive a chance de te dizer um adeus, e acho que isso é o que mais pesa em todos. Sua mulher, a família, todos nós nunca soubemos voltar àquela cena, àqueles dias. Sua filha mal havia completado um ano... Em pensar nisso, agora que também sou pai, vejo tudo ganhar novos contornos.

Seu irmão, você viu, puxou cadeia e morreu por lá uns anos atrás, pendências... Porra, o Xuxinha! Lembro-me da sua cabeleira loira volumosa quando moleque e skate embaixo do braço... Algo no mundo deveria congelar a vida dos homens nos sonhos do menino.

Enquanto escrevo esta carta, amigo, 25 anos depois, e procuro com alguém uma foto sua, uma qualquer, a notícia num áudio em lágrimas de que sua filha acabou de morrer de dengue nesse último mês me caiu como uma pedrada... Como pode, justo agora? 25 anos depois... 25 anos de idade... Existe encontros e abraços de almas depois da morte? Se sim, ela deve estar aí, nos seus braços bem agora, a caminho de um perdão. Rezo profundamente para que sempre exista redenção entre pais e filhos.

Incrível pensar, mas ainda morremos muito de dengue por aqui.

Revivi um tanto da sua história conversando com alguns amigos sobre esta crônica, e, de alguma forma, ela é uma carta coletiva de todos nós, ao passado, ao agora e ao futuro: para onde estiver plantado os vestígios da sua memória, as folhas mortas da sua árvore de luto.

Sabe, Neal Peart, o baterista alucinante, morreu também recentemente em 2020, depois de ter ressuscitado de várias e várias tragédias. O que doi, o que doi mesmo, meu amigo, é saber que uma palavra poderia ter te ressuscitado antes do fim. A palavra não dita. A palavra segredada. A palavra nunca falada.

Esta carta, uma palavra.


De poesia à ficção, Wil Delarte tem cinco livros autorais, além de publicações em diversas mídias e antologias. Também possui composições na área musical, com letras gravadas por artistas do Rock e da MPB. É idealizador do canal cultural Universos para Elos e escreve mensalmente a coluna 'Cartas para Ontem' , no Cotia e Cia
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