Por dentro da Cracolândia de Cotia

Um sentimento de melancolia se mistura no ar com o cheiro podre de restos de comida em um dos pontos mais frequentados por usuários de droga na cidade; local foi cena do assassinato da ex-modelo Aline Lopes, na semana passada

Foto: Neto Rossi / Cotia e Cia

Reportagem: Neto Rossi
Edição do vídeo: Rudney Oliveira

Segunda-feira (6), oito e meia da manhã. Dois policiais militares saem de armas em punho do prédio do Cotia Hall, antiga casa de shows em Cotia que deu espaço para uma Cracolândia. “Eles vieram procurar o Igor”, disse um morador do local [VEJA O VÍDEO NO FINAL DA REPORTAGEM]. 

Igor Santos de Moraes, segundo a Polícia Civil, foi o responsável por levar o corpo carbonizado da ex-modelo Aline Laís Lopes dentro de um carrinho de supermercado até a passarela da Escola Estadual Pedro Casemiro, que fica a 50 metros da cracolândia. Igor foi preso hoje, logo após a conclusão desta reportagem [VEJA AQUI]. 

Cotia e Cia andou por todo o imóvel abandonado. O local acumula lixo, restos de comida e um sentimento melancólico. A estrutura que restou do Cotia Hall foi transformada em cômodos improvisados. Cerca de 30 pessoas moravam no espaço. Hoje, só tinham 4. “Ficaram com medo depois da morte da Aline”, disse um dos moradores que ainda estavam lá.

Foto: Neto Rossi / Cotia e Cia 


LEIA TAMBÉM: “A morte da Aline repercutiu porque ela era conhecida, mas ali morre gente direto”

A Prefeitura de Cotia informou à reportagem, na semana passada, que está procedendo o pedido judicial para demolição sumária do imóvel. “Esse papo e gente já escuta há muito tempo”, rebateu um morador. Ao ser questionado se a demolição, apenas, solucionaria o problema, ele foi categórico: “Não. As pessoas daqui vão para outros lugares”.

Esses “outros lugares” dito por ele seriam outras cracolândias espalhadas pela cidade. Segundo Israel Fávaro, ativista social que trabalha junto aos dependentes químicos, existem no mínimo mais 4 em Cotia.

POR DENTRO DA CRACOLÂNDIA

Talvez, ao olhar da Raposo Tavares o que sobrou da construção do antigo Cotia Hall, não dê a real dimensão de como ele está por dentro. Ao adentrá-lo, é como se atravessássemos um portal que desse acesso a uma outra esfera, triste e deprimente, mas que se converge com o mundo real.

Cotia Hall (Cracolândia de Cotia) visto da Raposo Tavares. Foto: Neto Rossi

E é ali que dezenas de dependentes químicos passam horas, dias, meses e anos presos, literalmente, a um submundo. O local é frio, úmido e escabroso.

Um corredor, que parece a entrada de uma caverna, é o principal acesso para dentro da Cracolândia. Já pelo caminho, entulhos e restos de comida são predominantes.

Do lado de dentro da cracolândia de Cotia. Foto: Neto Rossi

No final do corredor, há um imenso pátio dividido por alguns cômodos, que seriam as moradias dos usuários de droga. Uma lâmpada está acesa na entrada de um desses cômodos, indicando que poderia haver alguém no local. Mas não tinha ninguém.

A reportagem foi caminhando por cima dos entulhos e de comidas estragadas. O piso estava tomado por água e lama, e havia goteiras em todas as partes. O cheiro era uma mistura de carne podre com água de esgoto.

Em outra parte do imóvel, havia uma mulher. Assustada, ela não quis conversar com a reportagem. “Aqui tinham várias ‘casas’. Já cheguei aqui e tinham 15, 20 pessoas”, diz Israel.

Um pouco mais ao fundo, uma cama. Acima, uma prateleira improvisada com pares de calçados velhos. Israel se comove com a cena e reflete: “A sociedade julga muito, mas para estar aqui, em um ambiente desse, em que só de a gente ficar aqui, já sente o ar te sufocando, essa pessoa precisa de ajuda, não é levar ela para o serviço social, o serviço social precisa vir aqui. A pessoa aqui já está nas trevas.”

Cama de um dos moradores da cracolândia de Cotia. Foto: Neto Rossi


BURACOS COM RESTOS MORTAIS DE OUTRAS PESSOAS

Israel foi mostrando pelo caminho alguns buracos escavados no chão. Segundo ele, há outras mortes neste local que não ganharam repercussão midiática.

“Há mais ou menos dois meses vieram com uma retroescavadeira aqui para procurar restos mortais de outra pessoa. A máquina veio por fora e escavou. Estavam procurando a pessoa e o celular dela deu nessa localização”, relata.

ONDE ALINE FOI MORTA E CARBONIZADA

Cotia e Cia esteve exatamente no cômodo onde a ex-modelo Aline foi espancada e depois morta. No local, alguns móveis se misturam com roupas velhas e rasgadas, pedaços de madeira e muita sujeira.

Do lado de fora, dois sofás, um deles, queimado. Foi nele que Aline teria sido amarrada junto a um colchão e, depois, carbonizada. Deste sofá, apenas restaram as cinzas.

TORRE

Dentro da Cracolândia existe um local conhecido como ‘torre’, que seria um espaço disputado entre os usuários de crack. Para acessá-lo é necessário subir um lance de escada bem apertado e se desviando de obstáculos.

No final da escadaria, à direita, há um cômodo. Havia colchão, lenhas, alguns objetos e um cheiro de fumaça, indicando que recentemente o local estava ocupado por alguém. Pelo chão, cinzas e latinhas de alumínio amassadas pelos usuários de crack.

Na parede, uma frase pichada chamou atenção: “Paulo, te amo”, que provavelmente deve ter sido escrita por Micheli de Andrade Ferraz, companheira de Paulo Lamartine, autora do homicídio da ex-modelo Aline, segundo a Polícia Civil.

Frase possivelmente foi escrita por Micheli, companheira de Paulo e autora do homicídio de Aline, segundo a Polícia. Foto: Neto Rossi

O crime teria sido motivado, inclusive, por ciúmes do companheiro. De acordo com as investigações, Aline, que também era viciada em crack, estaria transando com Paulo em troca de mais droga.

Ao descer da torre, mais um cômodo vazio com pertences pessoais, como colchão, cobertas, vassoura e algumas peças de roupas. O nome de Jesus estava escrito do lado interno e externo do cômodo. “No meio desse caos todo, ainda tem Jesus. Sempre há uma esperança”, destacou Israel.

“Não adianta a gente pegar e levar para uma casa de recuperação sem antes entender como ele veio parar aqui. Como tudo isso aconteceu. Como ele veio parar aqui”, reflete.

O ativista social, Israel Fávaro. Foto: Neto Rossi

NA PASSARELA

No final, a reportagem fez o mesmo caminho possivelmente feito por Igor, que teria levado os restos mortais do corpo de Aline até a passarela do km 31 da Raposo. Uma distância de cerca de 50 metros separa a Cracolândia de onde partes do corpo foram abandonadas.

Debaixo da passarela, Israel deixa um terço, como uma demonstração de fé, esperança e, quem sabe, uma luz para iluminar um problema que parece não ter solução, pelo menos, não de forma simplória.

VEJA ABAIXO O VÍDEO DA REPORTAGEM:

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