Crônica Envenenada #9: Essa Gente

Leia mais uma crônica envenenada na coluna de Wil Delarte


Imagem: Ilustração @wdelarte (original: Vejasp.abril)

- Deus nos livre, amor, acho melhor pegarmos outra rua.

- Mas por que, benzinho?

- Tem um tipo muito estranho lá na frente... Nem é pela cor branquinha, ou cabelo dourado e liso... É pela roupa, Deus me livre! Olhe só, camisa polo ensacada, calça apertada... Até sapatênis! Estou com medo, amor.

- Calma, não devemos julgá-lo assim... Se bem que o sujeito tem uma cara de farialimer criado nos Jardins.

- Ai, não fala isso, esse pessoal é cristão, muito cristão, e você sabe bem como são todos!

- E o Estado que não faz nada! Cadê os militares? Absurdo! Está na cara que ele é hetero, olhe o jeitão, marombadinho, deve também ter um daqueles relacionamentos monogâmicos, Deus-do-céu!, de repente até seja pai de família.

- Que horror! Também não duvido que tenha emprego formal, formação universitária e, ai meu Deus, registro em carteira... Será? De repente seja até doutor... Onde esse mundo vai parar?

- Meu pai - que o santo Pai o tenha - era quem estava certo: loiro quando não faz na entrada, caga na saída.

- Amor, amor, veja os óculos do tipo, ai, intelectual! Não me misturo com esse pessoal... E que maleta de couro é essa nas mãos?! Aposto que tem contratos, ou pior, livros lá dentro!... Que lástima, cada moda que é difícil de entender... O que faremos?

- Não se desespere, meu bem... Se voltarmos, é capaz dele perceber e não sei o que possa acontecer... Vamos fingir naturalidade, vamos conversar... Isso, sorrindo e conversando como se nada estivesse acontecendo...

- Não largue a minha mão, por favor... Do que vamos falar? Ai, ai, ele está bem do seu lado...

- Disfarce, sorrindo e conversando... Olhando para mim... Fale qualquer coisa...

- Eu te amo, sempre te amarei.

- Está nas nossas costas, não olhe.

- Ai, nas nossas costas! Não me solte!

- ...

- ...

- Pronto, passou! Ufa... Por que está suando? Está tudo bem agora.

- Não ria.

- Você é linda quando fica nervosa, sabia?

- Pare com isso... Acha que o prejulgamos?

- Não sei. Pelo sim, pelo não, melhor termos cuidado.

- Bem que você disse que era pai de família, olhe lá, chegou a esposa com dois filhos! Não olhe assim, seja discreto.

- Esse bairro não é mais o mesmo. A continuar assim, vamos ter que nos mudar novamente.

- Fazer o que, amor? Vai ser melhor... Você viu o tipo dela? Típico de mulher erudita que, ai credo, deve escutar aquela música de louco...

- Clássica?

- Isso... Não suporto essa gente.



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