Crônica Envenenada #4 - Rua Caminho Existente

Toda vez que, hoje, piso na rua da minha infância, sinto estar num palco de santos e fantasmas, personagens míticos e histórias pra boi dormir. Eram poucas casas à época, era a grande mata atrás da nossa, era mato na frente e dos lados. Esses condomínios todos nem sonhavam existir na Rua Caminho Existente

Foto: Foto: @wdelarte


Por Wil delarte

A rua da minha infância tinha um nome estranho e auto-afirmativo: Rua Caminho Existente. Poderia ser o título de um livro oriental sagrado, ou de um inspirado filósofo existencialista, mas era o nome da minha rua, e na cidade de Cotia não havia outro lugar melhor para depositar e recolher meus sonhos de menino.

Ela praticamente começava num Campinho, ali onde Luciano (espécie de técnico nosso) e Jaelson, o meia mais habilidoso (e manhoso) do nosso tempo moravam, e ia até o Campão, lá onde o bicho pegava com os maiores. O futebol começava de manhã no Campão e terminava à tarde no Campinho, ou vice e versa. Pro Campão era bola de capotão, estoura-dedo mesmo. Passar sebo na chuteira pra amaciá-la era condição. Mas quem tem bola? Fabinho, que morava um tanto acima, de frente pro Dehoney, é quem era o dono. Se injuriasse, metia-a debaixo do braço e jogo acabou. Seu pai chegou a treinar toda a molecada, antes de partir deixando saudade e um vácuo grande, enorme, em toda a Rua Caminho Existente.

A rua continua lá, Mãe ainda mora nela. De certa forma, eu também. Nem só de Futebol ela vivia, Religião era forte pra danar. A Rua Caminho Existente, apesar de pequena e irrelevante no mapa, era como um rio sagrado de matriz e matizes africanas. Na nascente, o terreiro da Mãe Alcina, banto, Angola (que Oxalá a tenha). Na beira, de frente pro mar, que é o próprio Campão, o terreiro do pai Alabiy, yorubá, Ketu. No meio do caminho, como pedra na água, o terreiro de minha Mãe, Umbanda sincrética, regada de ponta a ponta na fonte afro desse rio.

A tríade daquilo que não se discute, fechava em nossa rua com Política, de quatro em quatro anos, quando a briga era grande para ganhar cestas básicas, traves de verdade no Campão, uniformes pro time, e todas benesses de se aproveitar com urgência nessa data.

Toda vez que, hoje, piso na rua da minha infância, sinto estar num palco de santos e fantasmas, personagens míticos e histórias pra boi dormir. Eram poucas casas à época, era a grande mata atrás da nossa, era mato na frente e dos lados. Esses condomínios todos nem sonhavam existir na Rua Caminho Existente. Piso na rua e não vejo a placa confirmando sua eterna existência. Nessa cidade, raras são as ruas que possuem placas. Uma rua sem RG. Existiríamos sem número, sem cadastro em registros gerais?

Se fechar os olhos, ainda escuto Lico xingando Mata-gato, Alessandro com Tieta, sua cachorra, caçando saruê no mato, Wellington me explicando como deixar a arapuca firme, armando-a na mata pra pegar juriti. Se fecho os olhos, sinto um dedo apertar meu olho fechado como indicativo para escolher a tal menina na brincadeira de cair no poço. Não sei o porquê, mas na rua da minha infância não se brincava de “pera, uva, maça, salada-mista”, era “Caí no poço”. E quem tira? Meu bem. Quem é seu bem? É essa? Não. É essa? Não? É essa?... Se o combinado desse resultado, o toque mais forte no olho indicava que era a menina certa. Aí era abri o olho e partir pro abraço. Treinávamos beijos a tarde inteira, e não me recordo de haver pais estranhando, de repente nem sabiam o que fazíamos, apenas crescíamos, soltos, existentes.

E tinha o jogo da bandeira, queimadas, polícia-e-ladrão. Tinha esconde-esconde nas casas em construção onde ensaiávamos namoros mais intensos e resgatávamos revistas playboys que algum mais velho escondia. Não havia tabus, não tinha moral, só existíamos. Se fechar os olhos aqui onde agora piso, na Rua Caminho Existente, sou capaz de ouvir Mãe gritar. Vem almoçar, Willian! Tá escurecendo, menino, já pra casa! Willian, vem pra dentro! Onde você está? Willian, você existe?



De poesia à ficção, Wil Delarte tem cinco livros autorais, além de publicações em diversas mídias e antologias. Também possui composições na área musical, com letras gravadas por artistas do Rock e da MPB


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