Crônica Envenenada #2 - Cômodo assombrado

Confira mais uma 'crônica envenenada' do poeta cotiano Wil Delarte

                                       Foto: Wil Delarte / Acervo particular @wdelarte


Sempre me instigaram lugares e coisas abandonadas. Repare, eles guardam em si vestígios de vidas passadas, vestígios de vida impressa na matéria, histórias. Por algum motivo estranho, lugares assim me trazem paz, ou um motivo para introspecção, não sei bem... É a mesma paz que sinto ao visitar túmulos em cemitérios. Seria estranho demais alguém sentir-se bem com o ambiente de enterros e cemitérios? Enfim, com alguma lupa, dizem, não há quem escape ao rótulo de “estranho”.

Sei que adoro ouvir os pássaros e insetos que esses lugares geralmente trazem, o sossego após o atrito da vida, a destruição que o deus hindu Shiva simboliza, o que sobrou de Shiva antes da regeneração, isso me instiga.

Essa história começa onde termina, num sítio abandonado que, sempre que posso, desvio meu caminho para adentrar seu portão escancarado e suas portas entreabertas. São duas casas, uma grande, outra menor, uma piscina, uma quadra com banheiros e tudo, tudo destruído pela força do tempo e esquecimento humano.

Tem um poço vedado com azulejos, um lugar cuja vista te convida para sentar-se e respirar fundo. Ali, sempre gostei de imaginar as histórias de famílias que nesse solo passaram e o misterioso porquê de a tudo terem abandonado. Foi ali, em cima desse poço, que um caseiro vizinho me apareceu num alerta.

- Ei, sabia que um menino se enforcou bem aí?

Levantei-me num impulso, sacudindo-me como quem limpa a calça após sentar-se em alguma sujeira, e ri.

- Como assim, “se enforcou”?

- Pois é, não sei muito da história, mas todo o mundo sabe que era um rapaz jovem, bem aí, bem aí.

O vizinho foi embora e eu fiquei mais um pouco, ainda mais instigado com a história. Isso explicaria o abandono do local, pela família e por todos os futuros e desistentes compradores... Quem quer morar numa história dessas? Coisas não são só coisas, coisas são histórias que habitam as coisas, sempre tive essa estranha percepção.

Entrei num cômodo, talvez o quarto que um dia fora daquele rapaz, um rapaz com camisa preta de rock, talvez; um rapaz nu, brigando com sua própria sexualidade, talvez; um rapaz alegre, cuja namorada o trocou por outro amor, talvez. Tudo nesse cômodo agora me revelava a história de uma solidão. Quantas e quantas famílias nesse atual morticínio pandêmico não estariam construindo cômodos assim, assombrados? Quanta assombração se alimenta do nosso abandono diário? Dei um passo para trás e um clique, fotos assim sempre me instigam.

Repare o vazio. Repare agora a janela. Repare bem. Há um mato verde gritando lá fora, entrando com a luz nesse cômodo assombrado. É da natureza da luz revelar o tamanho de uma assombração. Um telefonema, uma palavra, um ombro, um aceno, teriam aberto de vez aquela janela? Nunca saberemos. O que deteriora a cada segundo essa casa é esse acúmulo de histórias mortas.

Há um outro deus hindu que espera pacientemente o desenrolar desses atos, Brama, o criador de tudo. Se Shiva realmente chegar ao fim, Brahma abraçará seus enredos e determinações. É Brahma ali atrás da janela, consegue ver? Se o vento soprar um pouco mais, sementes do acaso adentrarão e, dentro dessa umidade, uma floresta inteira poderá se erguer. É da natureza da natureza ser mais forte que os homens.

Aqui, contudo, acabo onde começo essa história: virando as costas para o nosso sítio abandonado, com seus cômodos e poços assombrados, lembrando que nessa conta ainda falta um terceiro deus hindu, Vishnu, que, dizem, é o deus da preservação. Pode ser Vishnu tocando um telefone exatamente agora... E, então, vai atender?




De poesia à ficção, Wil Delarte tem cinco livros autorais, além de publicações em diversas mídias e antologias. Também possui composições na área musical, com letras gravadas por artistas do Rock e da MPB
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