Crônica Envenenada #3: Uma anticrônica para um ano possível

Foto: acervo particular @wdelarte   

É das crônicas se embeberem dos fatos de seu tempo, não por acaso, Cronos, o deus grego do tempo, está no radical do termo, batiza o gênero e dá o mote. Pois bem. Não que eu queira aqui subverter nada, e talvez nada do que escreva a seguir esteja mesmo alheio aos acontecimentos, em especial, dos dois últimos anos. O que quero fazer é algo bem simples, e até clichê, uma lista de dez insights para um 2022 possível: possível de se viver.

            Trata-se de uma lista pessoal-universal. Não há paradoxo aqui, e isso bem que poderia compor a própria lista: não há nada de estritamente pessoal que não seja universal. Mas, sem muita delonga, o que estou tentando dizer é que nesses últimos dois anos palavras como “Eternidade”, “Justiça”, “Fraternidade”, “Amor” e “Verdade”, ganharam nuances que antes da pandemia praticamente se opunham a essas mesmas, logo, tais palavras ganharam um novo espaço, nova luz e cor, em tudo o que tenho encontrado.

Então, vocês já entenderam, por ser uma lista atemporal e universal, pretende-se servir para qualquer ano e em qualquer época da raça e dos propósitos humanos, sendo assim, está suspensa no tempo e se reveste de ares anticrônicos. Particularmente, é o mais sincero que poderia ofertar nesse dia que antecede a uma virada, quem sabe, de alguns paradigmas. Vamos então, sem ordem de valor cronológico, a ela, à Lista:

 1 – Viver é “travessia perigosa”, disse Guimarães Rosa certa vez. Repare, o que chamamos de “Paz” pode ser somente o estacionamento perpétuo, o fim. O que chamamos de “Prosperidade”, muitas vezes é um fardo, um desafio ou uma cilada. Pense em uma pessoa que só recebe da vida fartura e abundância e a ela nada retorna. Quanto do degrau humano ela tem avançado ou regredido? Quanto de amor e de loucura, esse pouquinho de saúde, ela tem experimentado?

2 – Há um provérbio de Sidartha Gautama, o Buda (que, em verdade, acabei de inventar), que diz o seguinte: “Siga o Dharma, e beijinho no ombro do Carma”. Basicamente isso quer dizer: “Respeite o fluxo natural da vida, busque a justa parte em cada ação, e as consequências dessas causas serão, por si mesmas, justas”.

3 - Platão não fala propriamente das cavernas, as sombras que, no mito, chegavam pela luz do lado de fora, podem estar agora na tevê ou em um vídeo que você assiste.  Libertar-se da superfície das coisas e caminhar em busca de alguma essência é o que moveu os humanos a saírem delas, das cavernas, e não é razoável matarmo-nos uns aos outros agora para, ao fim, voltarmos para lá.

4 – Quando, segundo o texto sagrado, Jesus de Nazaré disse “Na casa de meu pai há muitas moradas”, ele tentou dizer isso mesmo, você entendeu: muitas moradas, muitos caminhos, muitas cores, muitas etnias, muitas ideologias, muitas religiões, muitas tradições e, claro, opções e desejos sexuais diversos.

5 – Lao Tsé tinha um provérbio que dizia: “Para ganhar conhecimento, adicione coisas todos os dias; para ganhar sabedoria, elimine coisas todos os dias”. Apertando a tecla SAP, podemos resumir da seguinte forma: Para encontrar algo que seja, talvez, genuinamente humano e seu, e intrinsecamente de todos, terá que aprender a desaprender tudo o que chegou até você pela cultura, pelos pais, pelos outros. Esse é o caminho do Tao, o de se reconectar ao fluir e ao fluxo da natureza, ali, onde até os pensamentos são atritos” (a tecla SAP da tecla SAP, agora, é com vocês!).

6 - Há um ditado iorubá que diz: “Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”. Ok, com a tecla SAP poderíamos entender que “A todo o momento estamos reinventando o passado, ressignificando-o e, também, a compreensão do presente está neles, nos ancestrais, nas causas primais, e são eles nosso maior legado e tesouro”.

7 – Quando Nietzsche propõe a ideia de nos retornarmos eternamente ao mesmo ponto, estava falando de algo muito simples: a vida é o aqui e o agora, se você não desejar que esse segundo retorne eternamente, ele não vale a pena. Se o segundo não vale, uma vida, muito menos. Fazer esse segundo valer a pena é ir ao encontro do que ele chamou de “demasiado humano”, mas, com tecla SAP, também podemos chamar de “nosso mais alto auto-altar”.

8 - Os astros andam dentro da gente, os astrólogos tentaram dizer isso, mas nunca conseguiram. Jung explicou melhor, falando dos arquétipos. Os iorubás tinham a chave dos 256 destinos humanos, que estão nas combinações dos odus dos búzios. Ok, vamos de tecla SAP: “O que vivemos, apesar de parecer muito nosso, é o que todos os seres humanos também vivem e sentem, e nossa maneira de compartilhar nossa experiência única é por meio da internalização e interpretação dos arquétipos sociais. Compreender o inconsciente coletivo é entender as engrenagens que nos movem. Sem isso, nem a coçamos ao tentar subvertê-las, que, aliás, é o grande barato”.

9 – Uma das leis egípcias de Hermes Trismegisto, você se lembra na voz de Jorge Ben, diz que “O que está no alto, é como o que está embaixo”, entender isso encurta várias casas no game da vida. Em resumo, quer dizer que “Há uma estrutura que obedece a Leis naturais-universais que se realizam em qualquer grau do tempo e espaço. Entendendo-a no micro, pode-se projetá-la no macro. Observando-a no macro, a recupera-se no micro”.

10 – A lista de todo o conhecimento humano tem um limite: eram páginas, agora são terabytes. Não se impressionem, há uma outra infinita que lista tudo o que ignoramos. Ame a segunda e estará a caminho da Sabedoria, do Tao, do Todo, do Dharma, da Casa do Senhor, do Axé cósmico-universal. Era o que Sócrates dizia e, também, o Etê Bilu com tecla SAP. Vocês se lembram.


De poesia à ficção, Wil Delarte tem cinco livros autorais, além de publicações em diversas mídias e antologias. Também possui composições na área musical, com letras gravadas por artistas do Rock e da MPB

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