Crônica Envenenada #1 - Amanhece no fim do mundo

Em sua estreia na coluna, o poeta cotiano Wil Delarte reflete sobre o período pandêmico em diálogo com sua filha de 4 anos

Foto: Arquivo pessoal / @wdelarte



Era um domingo, isolado e comum, do ano 1 p.p.c (pós-pandemia covid-19) e, na agenda, uma tarefa comum. Falei, “Filha, vamos com o papai à padaria?”. Do alto dos seus quatro anos e meio, olhinhos arregalados, Maria indagou, “Padaria, o que é padaria, pai?”.

Após uma breve explicação, lá fomos nós. Máscara, álcool em gel, “não toque em nada, está bem?”. Maria observava, do alto dos seus quatro anos e meio, tudo pela janela do carro, como sempre, atentamente, encantada. Fomos, compramos pães e voltamos. Chegando em casa, ela me revela num tom acima do encantado, maravilhada, “Pai, como ir à padaria é legal, eu amei... Amei, papai!”.

Olhei aqueles olhinhos de jabuticaba e não soube o que falar. Passamos tanto tempo em distanciamento, que não havia me dado conta que os últimos dois anos foram basicamente tudo o que sua memória guardava da vida. Pensei nos parques que não fomos, nas peças e musicais que não assistimos, na escolinha que ela não foi, nos amigos que não brincou junto, e fiquei ali, paralisado, num abraço sem palavras diante de sua ingênua felicidade.

Quis a sorte do destino termos retornado à minha cidade, nossa cidade de Cotia, antes daquele fatídico dia em que Tedros Adhanom, diretor geral da OMS, declarou que o mundo estava em estado pandêmico. Quis a sorte do destino que um pedaço de terra e mato, o mesmo que pairou sobre minha infância, do alto dos meus quarenta anos, também fosse agora a casa de minha filha.

“Está vendo aquele lago, amor? Papai já nadou nele quando era pequeno como você, sabia?”. Dos três aos quatro anos e meio, a vida para minha pequena teria sido basicamente plantas, bichos, sua cachorrinha-irmã, papai, mamãe, vovô, vovó, e cinco primos, vez em quando. Por sorte, a pandemia não levou as duas vovós, tentou com todas as forças, mas não as levou. Um balanço que pendurei em árvores, um escorrega de madeira, o canto dos nossos pássaros soltos por aí, essa foi toda sua vida recordável até aqui.

Naquela manhã comum de domingo, também havia acordado mais cedo com um revoar incrível de maritacas. O Sol surgia entre as folhas, refletindo sua luz no lago. Compus ali a letra de uma canção que falava de uma manhã no fim do mundo. “Pai, quando eu crescer, sabia que vou visitar o espaço sideral?’. Do alto dos seus quatro anos e meio minha filha guardava para si o mistério de tudo em estado virginal.

Fiz uma prece silenciosa, dessas que fazemos em algum quarto fechado dentro de nós. Na prece eu pedia para que a vida fosse generosa com minha pequena. Quis a sorte do destino podermos inventar, até aqui, uma vida analógica para Maria, com cheiro do velho normal da minha infância. Que o seu normal ainda possa também ser repleto de pessoas, de eventos e descobertas, de relações repletas de gente humana, esse foi meu pedido secreto na prece em que me petrificava, com esperança e medo do mundo que a ela se anunciava logo à frente.

“Vamos passear no lago, meu amor? Sabia que o papai nadava ali quando era pequeno como você?”. Do alto dos seus quatro anos e meio, Maria disse que sim, “Papai, eu sei, você já me contou isso... Ah, sabia que quando eu crescer eu vou visitar o espaço sideral?”. Amanhece, amanhece, cantava para embalar seus sonhos recém-nascidos... Amanhece o amanhã que o agora tece... “Claro, meu amor, não tenho dúvidas que vai visitar, se puder, deixe um quarto fechado para mim”.

De poesia à ficção, Wil Delarte tem cinco livros autorais, além de publicações em diversas mídias e antologias. Também possui composições na área musical, com letras gravadas por artistas do Rock e da MPB



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